SARA in Expresso: “À sombra de Buñuel”

“Sara”, de Marco Martins, que Beatriz Batarda protagoniza, é uma série fulgurante como nunca se viu na produção lusa. Estreia no domingo à noite, na RTP2.

No princípio há uma prestigiada atriz de cinema português que, como artista, não tergiversou para o reino das telenovelas e, como pessoa, não se deixou tentar pelo deslumbramento das revistas cor de rosa. Sara Moreno, a que Beatriz Batarda dá corpo e alma, está, contudo, a ter um problema: não consegue chorar. E como é que o estereótipo de uma grande atriz dramática se aguenta sem essa competência básica? Não se aguenta. É por isso que, na tempestade de uma intensa cena trágica, Sara abandona filmagens, foge dali, é o fim. Decidida a encontrar um lugar onde a incapacidade de chorar não incomode, Sara aceita fazer uma telenovela. É lá que habita um ator inadjetivável, um homem que sabe todos os truques, sempre louvaminhas para melhor passar a perna, sempre alerta tanto para as mulheres em linha de vista como para os posts que, a um ritmo infrene, regurgita para o mundo — João Nunes que Nuno Lopes faz como quem respira, um personagem tão hiperbólico (vejam como ele sotaqueia…) que apetece dar-lhe com uma coisa na cabeça. Pesada. O que acontece a seguir, em tom de comédia acre, é delirante.

Tal com Sara Moreno, também Beatriz Batarda nunca fez telenovela, tão-pouco televisão (a não ser em Inglaterra), mas nada contra — diz-me a atriz, um destes dias, num glorioso fim de tarde com o sol a amarelecer as dunas do Guincho. “Não tenho, nem nunca tive, qualquer preconceito em relação à televisão. Aconteceu que a vida me ofereceu coisas muito interessantes para fazer, o que é um privilégio, uma sorte — e eu tirei partido disso ao máximo. Tive um ou outro convite para fazer telenovela, mas em alturas em que tinhas peças ou filmes e não estava disposta a abdicar disso para estar dez meses naquilo. Tenho curiosidade, sempre tive, em relação à televisão, mas, como espectadora, não sou uma espectadora de telenovelas. A vida não me levou para aí.” De todo o modo, a sátira que “Sara” faz em relação ao mundo da telenovela denota um universo particular, nunca há tempo para se preparar nada, a rapidez da rodagem é vertiginosa, há uma competição entre atores quase desnaturada, a publicidade em product placement é inevitável… “São outros códigos, outras regras, outras prioridades, a telenovela é um produto muito particular, para consumo a longo prazo. Mas a coisa que, provavelmente, mais me tenha feito refrear essa curiosidade em relação à televisão foi a exposição pública. Toda a vida vivi uma contradição muito grande. Adoro a minha profissão, adoro ser atriz, adoro contar histórias, mas vivo muito mal com a exposição pública, as revistas, até mesmo as entrevistas. Não gosto de ser reconhecida na rua, por exemplo, fugi sempre um bocadinho disso, sempre. E hoje há uma grande capitalização na persona pública. Os atores que se dedicam à telenovela têm uma pressão muito grande em estar no Instagram, em ir alimentando os seguidores e isso é todo um universo que, para ser honesta, não me interessa muito. Mas reconheço que são as novas linguagens de comunicação. No outro dia a minha filha disse-me que já ninguém vê o Facebook e que tenho de abrir conta no Instagram. E eu, se calhar, vou seguir o conselho dela. Tal como a Sara…” Um dos aspetos curiosos da série é, aliás, a proliferação de mensagens que, de vez em quando, se abrem no ecrã, visualizando as comunicações que a personagem está a ter. E eu que até tenho um televisor bastante grande, num primeiro momento tentei ler o que lá vinha, para descobrir, de imediato, que não era possível, que a ideia é que o espectador, talvez lendo uma coisa ou outra, veja Sara submergida num fluxo comunicacional onde, de facto, nada se comunica. “É uma contribuição para o vazio.”

“Sara” é uma ideia de Bruno Nogueira, trabalhada com Marco Martins (e Ricardo Adolfo). Vivendo com um e sendo amiga e colaboradora de longa data de outro (“eu quase que vivo com os dois”, graceja), de que modo a personalidade de Beatriz Batarda marcou o projeto que se cimenta em torno da sua personagem? “O Bruno foi convidado pela RTP a apresentar um projeto e, claro, a ideia nasce do facto de ele viver com uma atriz como eu que, estereotipada, poderá corresponder à Sara. Não a premissa trágica que ele transforma em comédia, de ela não conseguir chorar, mas o facto de eu ser contactada normalmente para interpretar personagens pesadas, nunca coisas leves, a minha não-relação com o mundo da telenovela… Essa é a base. Eu não tive nada que ver com a escrita da série, a única coisa que sugeri foi o nome, Sara é o meu alter-nome e Moreno é um apelido meu. Mas eles foram buscar coisas minhas, não biográficas, enquanto atriz. Eu trabalho os personagens sempre em zonas de contradição, em que a personalidade nunca é uma coisa bidimensional, num momento é uma coisa e noutro segundo é outra. É algo que tem que ver com a minha personalidade, com a maneira de gerir as convenções sociais, a minha voz crítica que está em permanente conflito com aquilo que são as normas do comportamento público e profissional. Ser um ator profissional exige uma enorme disciplina, mas o artista não pode ser nunca um animal domado, tem de ser sempre um animal selvagem para poder tirar partido da sua liberdade interior.”

Um dos aspetos mais espantosos de “Sara” é a invenção de um personagem que para muitos espectadores alvitro que será sempre um mistério — o agente que Albano Jerónimo interpreta num equilíbrio grotesco que só um excelente ator sustenta. Não só um personagem, toda uma zona de hotel que Sara visita a espaços e onde encontra aquele homem que lhe traz hipóteses de trabalho e que é serviçal, esquivo, tentador. É uma situação ousada — Sara e o seu duplo — este mergulho numa tonalidade surrealizante onde as ficções televisivas portuguesas nunca por nunca se atreveram a entrar (lá está, sobre a cama, um enorme cartaz de “Este Obscuro Objecto do Desejo”, de Buñuel, a sinalizar que há outros registos para lá do naturalismo/realismo). Quem souber ler que leia! No fundo, Marco Martins e Bruno Nogueira não se conformam com o insultuoso lugar-comum do ‘p’ra quem é, bacalhau basta’ e atrevem-se a dar a provar ao espectador iguarias fora do menu habitual. Iguarias que não são só as presentes no tecido narrativo, mas se espelham na qualidade da própria produção, impossível com os valores financeiros que a RTP disponibiliza. Se não houver uma rentabilização em mercados internacionais, um défice constará no relatório e contas de 2018 do Ministério dos Filmes, a empresa de Marco Martins (virada sobretudo para a publicidade) onde a produção de “Sara” assentou.

Não se pense, nunca por nunca, que “Sara” é um simples produto de comédia, porque a sua tessitura é largamente mais complexa — como mostra a constelação de personagens secundários, do pai, escritor, que não fala com ninguém e escreve incessantemente, ao amigo cantor sem jeito que lhe serve de higiene sexual. Há um momento em que a protagonista, sentindo que tudo à volta e por dentro se afunda, telefona à amiga do peito, Júlia/Rita Blanco, aquela que está sempre lá para todos os momentos, maus e bons, para os copos e para a ressaca. Antes tínhamo-las visto cúmplices, unha com carne, no riso e no abismo, parceiras de uma coisa antiga, apesar do rumo de ambas não poder ser mais diferente. E, surpreendentemente, Júlia diz-lhe que está farta de ser motorista dela — e desliga-lhe o telefone. Esta cena acontece num momento já avançado de “Sara”, que até aí tinha decorrido num ambiente de sátira, de humor — intransigente, corrosivo, muitas vezes desconcertante, mas humor, apesar de tudo. Nesse momento, todavia, nós percebemos que “Sara” enegrece — e o mundo para onde, no termo da série, Sara caminha é bastante temível.

Pude ver “Sara” em contínuo, em vez de estar constrangido às fatias semanais que a RTP2 vai pôr no ar a partir de domingo. Em verdade vos digo que é preciso garantir que se possa ver “Sara” como se fora um filme longo (uma edição em DVD ou Blu-ray, sonhemos…). Em qualquer caso não pode ficar nesta emissão e, depois, desvanecer-se — sorte malvada dos produtos televisivos — para que tudo não acabe numa memória nevoenta da melhor série que a RTP alguma vez ajudou a produzir.

Jorge Leitão Ramos,

in Expresso